segunda-feira, 29 de abril de 2013

Análise Tática - Ajax x Panathinaikos - 02/07/1971

Este post marca o retorno da seção Análise Tática do Catenaccio. O primeiro post da série é de autoria do meu amigo e grande conhecedor de Futebol, Marcelo Almendros, sobre o jogo Brasil e Suécia, no ano passado.

Entretanto, a partir de agora, a ideia é mesclar a análise tática com a história do Futebol. Ao invés de se analisarem partidas recentes, analisaremos jogos históricos, partidas marcantes.

Hoje, analisaremos a Final da Copa da Europa - como sempre ressaltamos, a atual UEFA Champions League - do ano de 1971, disputada entre Ajax, da Holanda, e Panathinaikos, da Grécia.

O Ajax, clube holandês com uma equipe treinada pelo majestoso professor Rinus Michels, que revolucionaria o mundo do Futebol com um jeito inteligente, ousado e eficaz de se jogar bola.

O Panathinaikos, clube grego, treinado no torneio pelo não menos espetacular Ferenc Puskás, que contava com uma equipe de muita raça, pegada e determinação, além do apoio maciço de sua fanática torcida.

Antes de passarmos à análise tática propriamente dita, faremos um breve histórico das campanhas de ambos os times até a partida Final da Copa da Europa.


Ajax:

Com o time campeão holandês da temporada anterior, Rinus Michels comandaria talvez a equipe mais talentosa da competição, contando com craques como o incomparável Johan Cruyff, o jovem Johan Neeskens, os atacantes Piet Keizer e Dick van Dijk, e os meias Gerrie Mühren e Arie Haan.

Entretanto, o início da campanha foi muito conturbado. O Ajax enfrentou, na primeira rodada, o inexpressivo 17 Nëntori Tirana, da Albânia. Depois de um empate inesperado em 2 a 2 fora de casa, bateram o clube albanês em Amsterdam por 2 a 0.

Na segunda rodada, o trabalho foi mais fácil, contra o Basel, da Suíça. No placar agregado de 5 a 1, passaram tranquilamente de fase. 

Nas quartas e semi-finais, o Ajax passaria no placar agregado em ambas oportunidades de 3 a 1, vencendo por 3 a 0 em casa e perdendo de 1 a 0 fora, primeiro para o Celtic, da Escócia, e depois para o Atlético de Madrid, da Espanha.


Panathinaikos:

O Panathinaikos, assim como seu adversário, era o campeão nacional do ano anterior. O ex-craque Ferenc Puskás treinava o esquadrão grego, que tinha como grandes talentos o habilidoso meia Dimitris Domazos, o maior jogador da história de seu país, e o artilheiro da competição, Antonis Antoniadis, centroavante guerreiro e ótimo cabeceador. No restante, tratava-se de uma equipe apenas disciplinada e raçuda.

Enfrentou o Jeunesse Esch, de Luxemburgo, na primeira fase, passando com facilidade no placar agregado de 7 a 1. Na segunda fase, enfrentariam o Slovan Bratislava, na época, da Tchecoslováquia, vencendo a primeira partida por 3 a 0, em Atenas, e perdendo o segundo jogo por 2 a 1.

Nas quartas-de-final, o Pana enfrentaria o forte e tradicional Everton, da Inglaterra. Contrariando as expectativas, os gregos alcançariam a fase semi-final, empatando as duas partidas, a primeira em Liverpool por 1 a 1 e a segunda, em Atenas, em 0 a 0. Logo, se classificaram devido ao gol marcado fora de casa.

Quem esperava os gregos no enfrentamento era o poderosíssimo e assustador Estrela Vermelha, da Iugoslávia. A expectativa, mais uma vez, era de um atropelo para cima do Panathinaikos, o que de fato aconteceu na primeira partida, uma vitória de 4 a 1 para os iugoslavos em Belgrado. Placar irreversível? Não para os guerreiros atenienses!

Em um Apostolos Nikolaidis - estádio do Panathinaikos - completamente lotado, e com o apoio de uma torcida apaixonada, que empurrou o seu time o tempo todo, o Pana conseguiu vencer o Estrela Vermelha pelo placar de 3 a 0, em um jogo tenso e emocionante, com dois gols do matador Antoni Antoniadis. Os gregos chegariam a Final se classificando, mais uma vez, pelo gol marcado fora de casa.

Seria a primeira e única vez na história de todas as competições interclubes europeias que um clube grego alcançou a partida Final.


O Jogo e Análise Tática:

Escalações e Formação:

O Ajax foi a campo com: Stuy; Neeskens, Hulshoff, Vasovic, Suurbier; Rijsders, Mühren, Cruyff; Swart, van Dijk e Keizer. Técnico: Rinus Michels.

O Panathinaikos estava escalado com: Ikonomopoulos; Tomaras, Kapsis, Sourpis, Vlahos; Kamaras, Eleftherakis, Domazos; Grammos, Antoniadis e Filakouris. Técnico: Ferenc Puskás.

Ambas as equipes atuaram no 4-3-3, com os desenhos táticos conforme demonstrado na figura abaixo.























Análise Tática:

Embora os dois times estivessem dispostos territorialmente no 4-3-3, formação tradicional do Futebol e em voga na época, ressalta-se aqui a diferença de movimentação e de posicionamento entre as duas equipes.

O Panathinaikos atuava de forma estática em relação à sua formação, ou seja, raramente os atletas alternavam posições entre si, não se distanciando de seu ponto referencial no campo. Em poucas oportunidades, Domazos, o jogador mais técnico da equipe, se movimentava com maior liberdade para tentar criar chances de ataque.

Já a equipe do Ajax dava a primeira amostra do que seria o Futebol Total - modelo de jogo adotado pelo próprio time, e depois, pela Seleção Holandesa - com praticamente todos os seus jogadores em movimentação constante, ocupando os espaços deixados uns pelos outros com muita frequência.

Para se ter uma ideia, apenas três jogadores se mantinham praticamente estáticos em relação ao seu posicionamento: obviamente, o goleiro Stuy, e os zagueiros, Hulshoff e Vasovic. O restante se movimentava freneticamente, alternando posições e trocando passes com precisão.

Abaixo, demonstraremos o posicionamento do meio de campo de ambas as equipes.

Como pode-se perceber, o Panathinaikos atuava com um triângulo de base alta, ou seja, um centro-médio e dois meias, com Eleftherakis fazendo o papel de contenção, Kamaras atuando mais como apoiador e Domazos responsável pela criação da equipe.

O Ajax também atuou com três meio-campistas, embora sem uma formação definida entre eles:


Embora a figura demonstre um triângulo de base baixa, essa disposição era variável. Os três meias tanto faziam o papel de centro-médios quanto de meias de armação, devido ao sistema de movimentação ao qual já nos referimos antes.

Outro ponto que é de importante notoriedade é a intensa marcação imposta pela equipe de Amsterdam.

Uma novidade para a época, a marcação por pressão alta era característica da maioria dos times holandeses. O Ajax, sempre que se iniciava um ataque da equipe grega, pressionava o detentor da posse de bola, como demonstraremos na imagem a seguir:


Esta imagem demonstra claramente a marcação exercida pelos holandeses. Neste frame, demonstra-se a pressão alta com seis jogadores da equipe do Ajax, prejudicando a saída de jogo do Panathinaikos.

Com isso, a equipe grega não conseguiu trabalhar a posse de bola na sua capacidade técnica total, forçando passes longos visando o atacante Antoniadis, que tinha raro sucesso entre os dois zagueiros nederlandeses.

Ao contrário de seus adversários, o Ajax trabalhava a posse de bola com muitos passes e com muita movimentação, explorando a versatilidade e a capacidade técnica de todos os seus jogadores, sem exceção.

Além da superioridade tática, o Ajax contava com jogadores de grande capacidade técnica, como Johan Cruyff, que atuou pelo lado esquerdo, ora como meia, ora como ponta, explorando as jogadas individuais e passes verticais.

Um outro ponto peculiar foi a utilização do meia Johan Neeskens na lateral-direita. Na verdade, é uma característica das categorias de base do Ajax, que experimenta jogadores jovens em posições fora das suas originais, para fazê-los passarem pela experiência dos jogadores adversários.

Esses fatos, apesar da grande raça e vontade de vencer da equipe grega, levaram à vitória tranquila dos holandeses por 2 a 0, e o título incontestável de Campeão da Europa.


Resumo da Partida:

O Ajax abriu o placar já no início da partida, depois de boa jogada do ponta-esquerda Keizer, cruzando para a cabeçada precisa do centroavante van Dijk, marcando 1 a 0.

A partida se desenrolou com diversas chances desperdiçadas pelo esquadrão alvi-rubro, atacando com facilidade entre os espaços obtidos entre a equipe do Panathinaikos.

Os gregos, contando com a técnica de Mimis Domazos, tentaram incessantemente a ligação direta com seu centroavante, Antonis Antoniadis, levando perigo poucas vezes ao gol de Stuy.

A dominação durou toda a partida, culminando com o segundo gol dos holandeses, marcado pelo meia Arie Haan, que entrou no segundo tempo, aproveitando uma assistência fantástica de Cruyff, depois de jogada individual pelo flanco direito. O arremate ainda desviou em um defensor do Panathinaikos, tirando as chances de defesa do arqueiro Ikonomopoulos.

Esta seria a primeira grande amostra da revolução futebolística que viria dos Países Baixos, criada pelos holandeses, o Futebol Total.

O Ajax, jogando com a mesma base da equipe, mas já sem o treinador Rinus Michels, conquistaria a Copa da Europa nos dois anos seguintes, impressionando o mundo.

O reflexo do Futebol Total seria ainda mais amplificado na Copa do Mundo de 1974, com a seleção da Holanda, treinada por Rinus Michels, que espantaria o planeta com a forma inteligente e revolucionária de se praticar o esporte bretão.

O modelo de jogo criado pelos holandeses é utilizado, em variações, até os dias de hoje, aliado ao preparo físico cada vez mais forte dos atletas que o usam, bem como explorando as deficiências técnicas e táticas que assolam o Futebol atual.

Abaixo, segue o vídeo da partida na íntegra. Bom proveito!

 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Grandes Treinadores: Ernst Happel

Uma máquina de ganhar títulos.

Essa é a única introdução razoavelmente justa que se pode dar ao Grande Treinador do post de hoje, o lendário Ernst Franz Hermann Happel, conhecido popularmente apenas como Ernst Happel.

Ernst nasceu em Viena, no dia 29 de novembro de 1925, e começou a jogar Futebol nas categorias de base do Rapid Viena, aos 13 anos de idade. Estrearia na equipe principal com 17 anos, e defenderia o clube por 14 temporadas, em duas passagens, de 1942 a 1954 e 1956 a 1959. Entre os dois períodos jogando no Rapid, passou pelo Racing Club Paris - hoje Racing Club Colombes - por uma temporada.

Formou uma grande dupla com o veterano defensor Max Merkel, ganhando diversos títulos com o Rapid Viena, e recebendo a alcunha de Der Zauberer - alemão para "O Mago". Foi campeão da Bundesliga austríaca em seis temporadas - 1946, 1948, 1951, 1952, 1954, 1957 - da Copa da Áustria em 1946, e da Zentropa Cup - antigo torneio interclubes disputado na Europa Central - em 1951.

Era também uma presença constante na Seleção da Áustria, atuando em 51 partidas oficiais, marcando seis vezes. Fez parte dos esquadrões austríacos que disputaram as Copas do Mundo de 1954, na Suíça, e de 1958, na Suécia.

Iniciou uma das mais prolíficas carreiras de treinador em todos os tempos no ano de 1963, assumindo o comando do ADO (hoje conhecido como ADO Den Haag), da Holanda, clube que não obtinha sucesso a nível nacional desde 1943, quando ganhou o último título nacional de sua história.

O jovem treinador implantou um sistema diferente de jogo para os padrões holandeses da época, trabalhando para obter um excelente preparo físico de seus jogadores e marcando as equipes adversárias em pressão alta. De uma certa maneira, contribuiu de forma primordial para o desenvolvimento do estilo mais famoso de se jogar Futebol em toda a história, o Futebol Total.

Apesar de obter grande sucesso com o clube, parecia destinado a se manter apenas como coadjuvante com relação a títulos, chegando por três vezes à final da KNVB Cup - a Copa da Holanda - e perdendo todas elas, para o Willem II, Fortuna Sittard e Sparta Rotterdam, respectivamente.

Entretanto, a maré viraria para o competente treinador austríaco no ano de 1968, quando, mais uma vez, o ADO chegou à final da KNVB Cup. Nesta oportunidade, o título não escaparia das mãos dos comandados de Happel, que bateram o poderoso Ajax por 2 a 1.

Happel seria contratado pelo Feyenoord, no ano de 1969, tendo em vista a sua surpreendente trajetória comandando o pequeno clube da cidade de Haia. Em Rotterdam, conquistaria suas primeiras glórias de grande porte.

Já na sua primeira temporada sob a batuta do esquadrão do De Kuip, a de 1969-70, conquistou a Copa da Europa (hoje UEFA Champions League), em uma jornada fantástica, derrotando Milan, Vörwarts Berlin e Legia Varsóvia, culminando com uma Final contra o legendário Celtic de Jock Stein, time que era conhecido como os Leões de Lisboa, campeões do mesmo torneio em 1967.

A vitória por 2 a 1 no estádio San Siro garantiu o primeiro título do torneio para um clube holandês. Esta conquista lendária elevou Ernst Happel ao status de lenda na Holanda, junto com um grande time, que contava com estrelas da futura Laranja Mecânica, a impressionante Seleção Holandesa da década de 1970, como Rinus Israël, William van Hanegem e Wim Jansen, além do austríaco Franz Hasil e o artilheiro sueco Ove Kindvall.

No mesmo ano de 1970, o Feyenoord disputaria o título da Copa Intercontinental contra o violentíssimo time do Estudiantes de La Plata.

Na temporada anterior, o clube argentino proporcionou uma verdadeira guerra contra o Milan, sendo que na segunda partida, disputada em La Plata, vários jogadores do clube italiano haviam sido agredidos impiedosamente e sem qualquer pudor.

Entretanto, apesar das contínuas provocações dos platinos, e de iniciar a partida perdendo por 2 a 0, Happel e o esquadrão holandês conseguiram um empate heroico, com gols de van Hanegem e de Kindvall, levando um placar neutro para a segunda partida, a ser disputada em Rotterdam.

Jogando em casa, o Feyenoord não deixaria a audácia e a violência argentina levarem vantagem. Numa partida ainda mais violenta e tensa que a anterior, os holandeses venceriam por 1 a 0, com um gol do defensor Joop van Daele, conquistando o título de Campeões Mundiais de Clubes, a maior glória da história do clube.

Happel treinaria o Feyenoord por mais dois anos após a conquista do Mundial, vencendo o Campeonato Holandês na temporada seguinte, 1970-71. Deixaria o clube em 1973, buscando novos desafios e tentando evitar a acomodação de sua carreira. Deixaria muitos amigos, muita história e muita admiração em Rotterdam.

Passou rapidamente pelo Sevilla, da Espanha, onde não conseguiu se adaptar adequadamente, se transferindo em 1975 para o Club Brugge, da Bélgica.

No Brugge, comandaria um time sem estrelas, mas que jogava um Futebol ao seu modelo, de pressão na marcação, toque de bola curto, envolvente e objetivo. Venceria o Campeonato Belga nas três temporadas em que treinou o clube, em 1975-76, 1976-77 e 1977-78. Venceria, também, a Copa da Bélgica na temporada 1976-77.

Ainda, chegaria na Final dos dois maiores torneios continentais da Europa. Na temporada 1975-76, na Copa da UEFA, e na temporada 1977-78, a Copa dos Campeões da Europa. Em ambas as oportunidades, sucumbiria ao poderosíssimo time do Liverpool, multi-campeão no fim da década de 70 e da década de 80.

Em 1978, assumiria talvez o maior desafio da sua vida: treinar a seleção da Holanda para a Copa do Mundo. 

Comandaria uma equipe poderosa, vice-campeã do Mundo em 1974, e que surpreendeu o planeta com uma forma inteligente e eficaz de se jogar Futebol. Tratava-se de um esquadrão de muito talento, embora sem o maior jogador da história do país, Johan Cruyff, aposentado da Seleção Holandesa e que rejeitava jogar em um país sob Ditadura Militar.

Após uma primeira fase conturbada, classificando-se em segundo lugar de seu grupo, apenas pelo saldo de gols maior que a Escócia, a Holanda conseguiu classificação para a Final, batendo a Áustria e a Itália, empatando antes com a Alemanha Ocidental.

Na partida final do torneio, Happel e seus comandados enfrentariam a dona da casa, a Argentina. Após iniciarem perdendo por 1 a 0, com gol de Mario Kempes, a Holanda passou a jogar mais que os anfitriões, empatando aos 36 minutos da segunda etapa em uma cabeçada do reserva Dirk Nanninga. Mas o destino iria trair Ernst Happel.

Aos 45 minutos do segundo tempo, Robbie Rensenbrink acertaria o poste do goleiro Fillol, e a partida se decidiria na prorrogação pela primeira vez na história das Copas.

Mario Kempes marcaria um golaço, uma mistura de pura técnica e raça, aos 14 minutos da primeira etapa, e Daniel Bertoni marcaria um gol irregular, após carregar a bola com a mão dentro da área, sacramentando o resultado de 3 a 1 e a vitória argentina.

Voltaria à Bélgica em 1979, passando brevemente pelo Harelbeke, e assumindo o Standard Liège, onde venceria a Copa da Bélgica na temporada 1980-81 e a Supercopa da Bélgica, em 1981.

No mesmo ano de 1981 assumiria o comando do HSV, também conhecido no Brasil como Hamburgo. O já experiente Happel comandaria, mais uma vez, um time sem grandes estrelas, mas disciplinado taticamente e eficiente nas investidas de ataque.

Venceria o Campeonato Alemão nas temporadas 1981-82 e 1982-83, além da Copa da Alemanha na temporada 1986-87. Seria derrotado, já na sua primeira temporada, pelo Göteborg, na Final da Copa da UEFA.

A sua grande glória no clube hamburguês, entretanto, seria, mais uma vez, continental, e viria no ano seguinte.

Em 1983, o HSV venceria a Copa da Europa, derrotando, respectivamente, Dynamo Berlin, Olympiakos, Dynamo Kiev, Real Sociedad, e na Final, o fantástico esquadrão da Juventus - que contava com Michel Platini, Zbigniew Boniek, Paolo Rossi, entre outros - por 1 a 0, com gol do hoje famoso técnico Felix Magath.

Assim como no Feyenoord, Happel conquistou a maior glória da história do clube em que comandava.

Na sua segunda disputa da Copa Intercontinental, enfrentaria o Grêmio. Desta vez, Ernst Happel não teve a mesma sorte da primeira oportunidade em que disputou o torneio. Mais uma vez, seria derrotado na prorrogação após empate em 1 a 1 no tempo regulamentar, com dois gols do jovem craque brasileiro Renato Portaluppi, que definiu o placar em 2 a 1.

No ano de 1987, já bastante veterano, retornou à sua terra natal, a Áustria, para finalmente treinar um time local. O destino foi o FC Swarowski Tirol, fundado em 1986, após obter finalmente a licença para disputar a Bundesliga austríaca.

Happel, vencedor nato, conquistou por duas vezes o Campeonato Nacional da Áustria, nas temporadas 1988-89 e 1989-90, bem como a Copa da Áustria em 1989, permanecendo em Innsbruck até 1991, quando assumiria a Seleção da Áustria.

Infelizmente, comandou a seleção de seu país por apenas onze meses.

Ernst Happel faleceu em 14 de novembro de 1992, duas semanas antes de completar 77 anos de idade, em decorrência de um câncer de pulmão, herança de uma vida toda como fumante.

Um homem carinhoso, que amava sua família e o Futebol acima de tudo, era um dos grandes pensadores do  jogo. Estava à frente do seu tempo, instituindo a pressão alta no campo de adversário. Além disso, era uma pessoa calma, que estava sempre de bom humor e passando confiança para seus atletas.

Deu nome, postumamente, ao maior estádio da Áustria, o antigo Praterstadion, hoje, chamado de Ernst Happel Stadion. Em 1990, também recebeu a condecoração da Medalha de Prata da Áustria, por conta dos serviços prestados ao seu país.

Foi eleito o maior treinador da história da Áustria, e foi incluído pela IFFHS como um dos 100 melhores jogadores do Século XX.

É, juntamente com Jupp Heynckes e José Mourinho, um dos únicos treinadores a vencerem a UEFA Champions League por dois clubes diferentes - Feyenoord e HSV - bem como um dos raros treinadores a vencer o Campeonato Nacional por clubes de quatro países diferentes - Feyenoord, Club Brugge, HSV e FC Swarowski Tirol.

Abaixo, segue um resumo dos títulos que Ernst Happel conquistou, tanto como jogador quanto como treinador:

Como jogador:
- Campeonato Austríaco: 1946, 1948, 1951, 1952, 1954, 1957;
- Copa da Áustria: 1946;
- Zentropa Cup: 1951;

Como treinador:
- Copa da Holanda: 1967-68;
- Campeonato Holandês: 1970-71;
- Campeonato Belga: 1975-76, 1976-77, 1977-78;
- Copa da Bélgica: 1976-77 e 1980-81;
- Supercopa da Bélgica: 1981;
- Campeonato Alemão: 1981-82 e 1982-83;
- Copa da Alemanha: 1986-87;
- Campeonato Austríaco: 1988-89 e 1989-90;
- Copa da Áustria: 1988-89;
- Copa da Europa: 1970-71 e 1982-83;
- Copa Intercontinental: 1971.

Cansou? Esse é o currículo resumido de Ernst Happel.

Definitivamente, o mago austríaco faz parte da história do Futebol mundial. Seja pela categoria como jogador, pela inteligência e pelas glórias obtidas na casamata, ou ainda pelo grande homem que foi.

Com certeza, Happel deve estar treinando um timaço no campeonato do Céu. É claro, marcando sob pressão, tocando a bola e chegando na frente da goleira com muita facilidade...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Estrelas Cadentes: Pedro Mantorras

Esta é uma nova seção do Catenaccio, que versará sobre craques que surgiram como grandes figuras do Futebol mundial, e por um motivo ou outro, caíram vertiginosamente de produção ou não corresponderam às expectativas criadas em si pelo público. Chamaremo-nos aqui como as Estrelas Cadentes.

Para estrear a seção, falaremos de um dos grandes atacantes a surgirem do continente africano, e que, por uma série de graves lesões no joelho, acabou por terminar a sua carreira precocemente. Trata-se de Pedro Manuel Torres, carinhosamente conhecido pelo público como Mantorras.

Nascido na cidade de Huambo, em Angola, em 18 de março de 1982, Pedro recebeu a sua alcunha por conta de ter recebido algumas queimaduras leves no corpo. Mantorras, como é conhecido no mundo inteiro, é uma mistura de Mano Torras, uma expressão que quer dizer, aproximadamente, "irmão tostado".

O jovem Mantorras cresceu sem a presença do pai, falecido aos 3 meses de idade, e pouco depois, sem a mãe, que faleceu quando este tinha 16 anos, e em meio à miséria. Apesar das dificuldades, iniciou a carreira pelo Progresso Associação do Sambizanga, clube situado na capital de Angola, Luanda.

Destacava-se pela força, qualidade técnica e frieza na frente da goleira, e chamou a atenção de diversos olheiros, inclusive de clubes como o Barcelona, onde estagiou por alguns meses. Não ficou no clube blaugrana pela impossibilidade de se manter mais um atleta extra-comunitário, vaga esta que seria ocupada por outra promessa africana, o meia-atacante Haruna Babangida.

Apesar de deixar Barcelona, Mantorras continuava muito bem visto pelos clubes europeus, e foi contratado, aos 17 anos, pelo pequeno Alverca, de Portugal, em 1999. O seu impacto seria imediato.

Na temporada 2000-01, a sua última pelo pequeno clube de Lisboa, marcou 9 gols no Campeonato Português, inclusive um em uma fabulosa atuação contra o poderoso Sporting Lisboa, auxiliando os Touros a manterem-se na primeira divisão. Chamou por mais uma vez a atenção de gigantes europeus, especialmente desta vez o Milan. Entretanto, a facilidade com a língua portuguesa falou mais alto, e o Benfica o contratou no final da temporada.

Estreando pelo Benfica na temporada 2001-02, atuou em 30 partidas na Liga e marcou 13 gols, tendo ainda 19 anos de idade, o que impressionou a todos. Na época, foi considerado como o maior jogador a surgir da África Portuguesa depois da lenda Eusébio, e continuava atraindo clubes como a Internazionale e novamente o Barcelona.

O próprio Eusébio declarou, na época, que se tratava de: "um jogador que tem qualidades especiais, e certamente terá um grande futuro pela frente".

Entretanto, Mantorras sofreu uma grave lesão no começo da temporada 2002-03, que o infernizaria até o final da sua carreira. Por muita sorte, o jogador angolano não encerrou sua carreira logo após o ocorrido.

O jovem atacante, na época da lesão com 20 anos de idade, teve de passar por quatro cirurgias num período de dois anos e meio de recuperação.

Conseguiu retornar aos gramados apenas na temporada 2004-05, época em que jogar tornou-se um martírio para ele. Mantorras não conseguia atuar mais de 15 minutos por jogo, devido às incessantes dores na articulação.

Apesar de sua contribuição relativamente pequena nesta temporada, o atacante auxiliou o Benfica a quebrar um jejum que já durava 11 anos, e a vencer o título do Campeonato Português.

Apesar da sua grave lesão, Mantorras, a cada vez que saía do banco de reservas e pisava no gramado, trazia alegria e excitação para os torcedores benfiquenses. O entusiasmo que trazia às partidas em cada atuação, bem como seu declarado amor ao clube benfiquense e a sua entrega dentro de campo o tornaram uma lenda viva do Estádio da Luz. Os poucos momentos em que atuava frente aos seus seguidores eram a parte mais emocionante das partidas.

Seu carinho pelo clube era tanto, que chegou a declarar que com certeza se aposentaria lá, e trabalharia até de graça.

Mesmo depois de totalmente recuperado e apto para disputar partidas inteiras, o atacante angolano jamais retornou à sua forma original, não logrando sucesso em disputar posição com os outros atacantes titulares da equipe.

No início do ano de 2011, após ter jogado apenas 10 minutos durante a temporada 2009-10, Mantorras decidiu dar por terminada sua carreira no Futebol, declarando que "era hora de parar de lutar contra o sofrimento". Pedro protocolou pedido de aposentadoria por invalidez, por conta da sua incapacidade física permanente.

Em julho de 2012 recebeu uma grande deferência do seu clube, atuando em partida de despedida em um Estádio da Luz completamente lotado e ovacionando o ídolo angolano. Craques consagradíssimos, como Ronaldo, Figo, Paulo Futre, Edgar Davids e Fabio Cannavaro atuaram nesta partida, que teve fins beneficentes e arrecadou uma ótima quantia para instituições de caridade. Pedro, relembrando sua época majestosa no Benfica, marcou um dos gols da vitória de seu time.

Em sua carreira internacional, vestiu por 29 vezes a camisa da Seleção de Angola, marcando 4 gols e fazendo parte da equipe que disputou a Copa do Mundo de 2006. Vale ressaltar que Angola foi a primeira seleção africana de língua portuguesa a disputar uma edição da Copa do Mundo. Mantorras jogaria duas partidas, ambas saindo do banco de reservas, não evitando a eliminação na primeira fase de seu país.

Ao todo, atuou 127 vezes pelo Benfica, marcando 31 vezes. Conquistou a Copa de Portugal na temporada 2003-04, o Campeonato Português nas temporadas 2004-05 e 2009-10, a Supercopa de Portugal em 2005, e a Copa da Liga Portuguesa em 2009-10.

Um atacante de força física, técnica e categoria, Mantorras despertava a alegria dentro dos estádios. Jogador efervescente, capaz de lances plásticos e de golaços inesperados, encantou o mundo no início dos anos 2000, quando era considerado uma das maiores promessas do Futebol.

O atual presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, na época da aposentadoria do atacante angolano, declarou: "Pedro é um exemplo de entrega, de sacrifício, de superação. É um exemplo de otimismo e persistência. Alguém que nunca deixou de lutar, que sempre superou as dificuldades que passou. (...) Mantorras nunca deixará o Benfica, pois faz parte da casa, da nossa história".

Um jovem corajoso, que saiu da miséria extrema de seu país para prosperar no Futebol português, entrando na história do Benfica. Nem mesmo as repetidas e insistentes lesões o deixaram de acreditar que poderia continuar jogando, e seu caráter e amor pelo clube o marcaram para sempre na história das Águias.

Provavelmente, se Mantorras não tivesse sofrido tantas lesões durante sua carreira, ou quem sabe se tivesse recebido um tratamento mais adequado, seria uma das referências do Futebol mundial. Fica a lembrança dos seus lances e da sua dedicação pelo Benfica.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Craques que Nasceram no País Errado: Jürgen Croy

Às vezes, o tamanho do seu reconhecimento pode ser definido pelo lado do muro onde você nasce. Foi o caso do injustiçado goleiro Jürgen Croy.

Nascido em 19 de outubro de 1946, em Zwickau, na Alemanha ocupada pelos Soviéticos, que se tornaria, logo após, a Alemanha Oriental - também conhecida como República Democrática da Alemanha - pouco mais de um ano após a II Guerra Mundial, Croy foi um dos maiores goleiros da história. Entretanto, é muito pouco conhecido pela maioria dos fãs do Futebol.

Filho de um encanador, desde os oito anos de idade o jovem Jürgen era envolvido com o Futebol, atuando, primeiramente, como meia-atacante. Após chegar ao BSG Motor Zwickau - depois conhecido como BSG Sachsenring Zwickau, único clube que defendeu - foi "recuado" ao posto de goleiro, tendo em vista seu grande e incomum porte físico.

O seu progresso como guarda-metas foi tanto, que em 1963, com tenros 16 anos de idade, Croy teve sua primeira convocação para as seleções de base da Alemanha Oriental, em partida contra a Romênia, a qual sua equipe venceu por 4 a 1.

No ano de 1965 veio a primeira grande glória para Jürgen: o título do Campeonato Europeu Sub-18, disputado na Alemanha Ocidental. A DDR - sigla alemã para República Democrática da Alemanha - surpreenderia o mundo do Futebol, sobrepujando países tradicionais no torneio, como a Holanda, Tchecoslováquia e, na final, a poderosa Inglaterra, que viria a ser campeã do mundo no ano seguinte.

Atuou nas divisões de base e na equipe reserva do Zwickau até a temporada 1965-66, quando, aos 19 anos de idade, substituiria Peter Meyer. Só deixaria o posto de titular no ano de 1981, quinze temporadas depois, quando se aposentou.

Em 1967, venceu o primeiro de apenas dois títulos com o seu clube, a Copa da Alemanha Oriental. No mesmo ano, receberia sua primeira convocação para a seleção principal da DDR, sendo reserva do mais experiente Wolfgang Blochwitz. O seu status de reserva duraria pouco, pois em 1968 já assumiria a titularidade, sendo absoluto até 1979.

Jürgen Croy ainda era praticamente desconhecido pelo mundo, até 1974, única oportunidade em que a DDR disputaria a Copa do Mundo.

Na maior vitrine futebolística do Futebol mundial, demonstraria sua grande técnica, atuando muito bem em todas as partidas. Em especial, fez parte de uma das partidas mais polêmicas já disputadas em uma Copa do Mundo, um embate contra a Alemanha Ocidental, na Primeira Fase de Grupos.

Neste certame, a totalmente inferior DDR bateu sua co-irmã Ocidental por 1 a 0, com um gol de Jürgen Sparwasser. Entretanto, os ocidentais pareciam desinteressados na partida, e suspeitava-se de uma fraude no tal resultado. 

Analisando-se a tabela de classificação, valia mais a pena para a Alemanha Ocidental classificar-se em segundo lugar no grupo, para enfrentar na próxima fase a Iugoslávia, Suécia e Polônia. Em contrapartida, a DDR enfrentaria, tendo se classificado em primeiro lugar, o Brasil, Holanda e Argentina na fase seguinte.

Entretanto, polemicamente ou não, Croy se destacou como o melhor jogador de sua seleção, por conta das suas atuações seguras, pelas defesas cheias de reflexo e pelo garbo com o qual comandava a sua defesa.

Curiosamente, Croy era um dos poucos atletas da Seleção da Alemanha Oriental a não atuar pelas grandes potências de seu país - Magdeburg, Hansa Rostock, Dynamo Dresden e Carl Zeiss Jena - o que demonstrava ainda mais a sua qualidade como goleiro.

Em 1975, o Zwickau conquistou seu segundo e último título com Jürgen no gol, novamente a Copa da Alemanha Oriental. Croy foi o herói da final contra o superior Dynamo Dresden, defendendo duas penalidades após o tempo normal, e levando o clube para a Cup Winners' Cup - para nós, a Recopa da Europa - onde atingiriam um feito praticamente inacreditável.

Após uma trajetória fantástica, batendo, respectivamente, Olympiakos, Fiorentina - duelo que foi para a disputa de pênaltis, na qual, curiosamente, Croy converteu uma cobrança -, e Celtic, o BSG Zwickau sucumbiu apenas nas semi-finais, para o campeão e fantástico escrete do Anderlecht, no placar agregado de 5 a 0. Seria a última vez em que Croy disputaria um torneio de clubes internacional.

Incrivelmente, Jürgen sofreria, até o embate contra o Anderlecht, apenas 2 gols em seis partidas.

Após uma medalha de bronze nas Olimpíadas de Munique, em 1972, Jürgen Croy conquistaria sua grande glória, a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1976, em Montreal, no Canadá, depois de uma vitória na final por 3 a 1 contra a fortíssima Polônia. Suas atuações no torneio lhe renderam grande reconhecimento no seu país, inclusive recebendo o título de Cidadão Honorário de Zwickau, sua terra natal.

A partir deste momento, Croy apenas atuou incessantemente e admiravelmente pelo BSG Zwickau, até o final de sua carreira, em 1981. Disputou, ao todo, nas suas 17 temporadas como jogador, 372 partidas oficiais pelo seu clube, deixando de jogar apenas 44 vezes por lesões sofridas.

No ano de 1983, Jürgen Croy foi apontado como treinador do Zwickau, permanecendo no cargo até 1988. Na sua trajetória, conseguiu duas vezes a promoção para a DDR-Oberliga, a primeira divisão nacional.

Atuou brevemente como Vice-Presidente da Federação de Futebol da Alemanha Oriental, até a queda do Muro de Berlim e a consequente reunificação com a Alemanha Ocidental, em 1990. Após, passou a se envolver com a prefeitura de Zwickau, atuando de 1994 a 2000 como Secretário de Cultura, Educação e Desporto, e desde 2000, é o Diretor-Geral da Câmara de Comércio, Turismo e Cultura da cidade.

Foi eleito o melhor jogador de seu país nos anos de 1972, 1976 e 1978, bem como considerado um dos maiores futebolistas da história da DDR, em eleição realizada em 1989.

Ainda, atuou 94 vezes com o uniforme da Alemanha Oriental, sendo o terceiro maior jogador em convocações pelo seu país.

Croy era um grande goleiro, em todos os aspectos possíveis. Com 1,90 m de altura e 85 kg, era um arqueiro alto e forte para a sua época; Entretanto, possuía grande velocidade, agilidade e reflexos muito apurados, o que o tornava capaz de defesas espetaculares.

Além das qualidades físicas, possuía também grande controle sobre seus defensores e sobre a situação dentro da grande área. Tinha boa qualidade com os pés, algo raro para um goleiro da época, além de sair muito bem do gol, bem como um ótimo posicionamento debaixo das traves.

Especialmente, era um atleta que, ao contrário da maioria, trabalhava fabulosamente sob pressão, e crescia nos momentos difíceis de seu time. Para completar, era um goleiro altamente confiável e regular, produzindo temporadas sólidas nas balizas do Zwickau e da Alemanha Oriental.

Foi considerado, no auge de sua carreira, um dos maiores goleiros da Europa, juntamente a grandes lendas do esporte, como Sepp Maier e Dino Zoff. A própria IFFHS, em alguns de seus rankings, o posicionou entre os 6 maiores goleiros da história do Futebol.

Apesar de sua qualidade indiscutível, Jürgen teve raras oportunidades de mostrar sua classe para o mundo, o que justifica parcialmente o pouco conhecimento do público em geral sobre a sua técnica.

Além disso, atuou profissionalmente apenas pelo clube da sua cidade natal, o BSG Zwickau, o que limitou sua visibilidade à poucas aparições em torneios continentais, bem como apenas dois títulos em nível nacional.

Tivesse Jürgen Croy nascido do outro lado do Muro de Berlim, muito provavelmente, teria sido ele o goleiro campeão do mundo em 1974, no lugar ocupado pelo igualmente majestoso Sepp Maier.

Infelizmente, poucos puderam realmente apreciar a grandeza das atuações de Croy. Entretanto, aqueles que puderam assisti-lo vestindo as cores azul e branca de seu país, bem como as cores do Zwickau, merecidamente o consideram um dos maiores arqueiros a pisar num campo de Futebol em todos os tempos.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Craques que Não Assistimos Jogar: Bert Trautmann

Um homem de sorte, mas, antes de qualquer coisa, bravo e vitorioso.

Ex-soldado paraquedista alemão, prisioneiro na Segunda Guerra Mundial, radicado na Inglaterra, que se tornou goleiro de Futebol aos 25 anos de idade, e que venceu uma FA Cup jogando com o pescoço quebrado. 

Roteiro de filme? Não, apenas o breve resumo da história do Craque que não Assistimos Jogar do post de hoje, Bert Trautmann.

Nascido em 22 de outubro de 1923, em Walle, na Alemanha, o jovem Bernhard Trautmann, desde cedo, era um aficionado por esportes, sendo bem sucedido em várias modalidades na sua infância.

Em 1941, juntou-se à Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, iniciando como operador de rádio. Trautmann escapou diversas vezes da morte, estando presente, inclusive, na invasão aliada sobre a Normandia, e foi condecorado pelas suas participações nos eventos na Frente Oriental, recebendo a Cruz de Ferro.

Em 1944, o já sargento Trautmann foi promovido a combatente corpo-a-corpo, e com as seguidas derrotas do seu exército, decidiu desertar de sua unidade. Com medo de ser morto pelas próprias tropas alemãs, acabou sendo capturado por soldados americanos. Conseguiria fugir do aprisionamento, apenas para ser pego logo após por um soldado inglês. Não era a primeira ocasião em que Trautmann fugia, tendo sido também capturado pelo exército russo e pela Resistência Francesa. Nesta vez, entretanto, ele não tentaria fugir.

Dentre as suas diversas transferências de prisão sob posse do exército inglês, acabou em Ashton-in-Makerfield, campo de aprisionamento na própria Inglaterra. Lá, fez sucesso nas partidas de Futebol jogadas no presídio, atuando no meio de campo. Entretanto, após uma lesão sofrida, decidiu trocar de posições com um companheiro de equipe, iniciando involuntariamente uma das mais peculiares carreiras de goleiro da história.

Com o fechamento da prisão, em 1948, Trautmann decidiu não voltar para a Alemanha, e se estabeleceu ali mesmo, tornando-se fazendeiro, e jogando ocasionalmente no clube amador St. Helens Town. Fez um sucesso tremendo como goleiro, atraindo o interesse de vários clubes profissionais. O primeiro clube a lhe fazer uma proposta foi o Manchester City, que, em 1949, o contratou como amador, e o profissionalizou meses depois.

O seu início de carreira pelo Manchester City não foi livre de controvérsia. Os torcedores estavam indignados com a contratação de um ex-soldado da Luftwaffe, e ameaçaram realizar um boicote ao time. Além disso, Trautmann estava substituindo Frank Swift, um dos maiores goleiros da história do clube até então.

Entretanto, Bernhard foi bem recebido pelos seus colegas de equipe, incluindo o veterano de guerra e capitão do time, Eric Westwood, que declarou que não existiria guerra no vestiário do Manchester City. Foi lá que ganhou o apelido de Bert, pois era muito complicado para os seus companheiros de equipe, bem como para a imprensa local, chamá-lo de Bernhard.

Em seu primeiro jogo, recebeu vaias e xingamentos fortíssimos de sua torcida, contra o Bolton Wanderers. Trautmann teve uma atuação fantástica, e os protestos foram diminuindo a cada partida em que exibia seu estilo arrojado.

Na sua primeira partida jogada em Londres, em 1950, contra o Fulham, Trautmann foi recebido em um clima totalmente hostil. A torcida ainda tinha latente os danos que a Luftwaffe tinha causado à sua cidade, e Bert era o alvo da retaliação. Recebido com gritos de "Nazi" e "Kraut", e com o City em péssima fase na Liga, Trautmann teve uma das maiores atuações da carreira, evitando uma derrota de proporções estratosféricas, concedendo apenas um gol. Foi aplaudido de pé por ambas as torcidas, bem como por todos os jogadores em campo.

Após o rebaixamento em 1950, o City voltou à Primeira Divisão no ano seguinte, e nos próximos anos, Bert iria se consolidar como um dos maiores goleiros da Inglaterra. Suas atuações levaram a uma proposta do Schalke 04, que ofereceu ao City £1,000 por seu passe, o que, na época, era um valor muito bom. O clube rejeitou a proposta, declarando que o goleiro alemão valia, pelo menos, 20 vezes este montante.

Trautmann, além de realizar atuações memoráveis, tornou-se um goleiro inovador. No meio da década de 50, o treinador do City, Les McDowall, implantou um sistema de jogo que incluía um atacante bastante avançado, quase um centro-avante, que seria ninguém menos que o lendário Don Revie. 

O sistema tático de McDowall dependia da manutenção da posse de bola da equipe. Como, na época, os goleiros geralmente davam um balão para a frente assim que pegavam a bola, Bert teve de usar suas habilidades manuais - antes de ser jogador de futebol, jogou handebol - aprimorando seus lançamentos rápidos e longos, inspirados no goleiro húngaro Gyula Grosics.

Para iniciar os ataques, ou contra-ataques, Trautmann lançava a bola para os pontas, especialmente Ken Barnes ou John McTavish, iniciando as investidas com muita velocidade. Nesse sistema de jogo, o Manchester City atingiu a final da FA Cup de 1955, e Bert foi o primeiro alemão a disputar uma final de copa na Inglaterra. Infelizmente, o City sucumbiu ao mais forte Newcastle United, pelo placar de 3 a 1.

Em 1956, o Manchester City voltaria à final da FA Cup, depois de outra grande temporada. E nesta partida, Bert Trautmann atingiria status de mito no Futebol inglês. Após ter ganho a honraria de ser eleito o melhor jogador da Inglaterra na temporada, o primeiro goleiro a atingir este feito, Trautmann enfrentaria o Birmingham City no maior jogo da temporada.

Após o City liderar por 3 a 1, aos 30 minutos do segundo tempo, Peter Murphy, do Birmingham, foi lançado dentro da área, e Trautmann saiu aos seus pés. Em um choque fortíssimo, Trautmann e Murphy dividiram a bola, e Murphy atingiu o goleiro alemão no pescoço com o seu joelho (assista ao lance aqui: http://www.youtube.com/watch?v=rQWLuQPDs0o). O impacto foi tão forte que Bert havia quebrado o pescoço, literalmente.

De uma forma incrível, Trautmann levantou-se e continuou na partida - substituições não eram permitidas na época - realizando ainda outras defesas espetaculares. O Manchester City venceu a FA Cup, e Trautmann foi elevado a herói da conquista, merecidamente.

Após a partida, Bert foi à cerimônia de entrega do troféu, mesmo sem poder mexer a cabeça. No dia seguinte, descobriu que havia deslocado cinco vértebras do seu pescoço, tendo escapado da morte por meros detalhes.

Sua lesão o levou a perder muitas partidas da temporada 1956-57, e quando retornou, havia perdido a confiança em suas atuações. Entretanto, o corajoso goleiro retornou à boa forma, atuando como titular do Manchester City até o ano de 1964, quando se despediu em frente à uma plateia de cerca de 60 mil espectadores.

Ainda disputou duas partidas pelo Wellington Town, antes de se aposentar definitivamente do Futebol profissional.

Bert, desafortunada e injustamente, nunca atuou pela seleção de seu país, por conta de questões políticas. O treinador da época, Sepp Herberger, chegou a se reunir com ele, tendo dito que a Federação de seu país não permitia convocá-lo por não jogar na sua liga.

Um goleiro sem medo e dotado de grande frieza e inteligência, Trautmann tinha aproveitamento excelente contra cobranças de pênalti, defendendo 60% delas durante sua carreira. Ídolo de uma geração de goleiros, como Gordon Banks e Bob Wilson, bem como de seus contemporâneos, como o fantástico Lev Yashin, era também um homem de personalidade forte, tendo às vezes perdido a concentração com os seus próprios erros numa partida.

Entretanto, foi inovador e exemplo de coragem e dedicação a um time, tendo jogado praticamente a carreira inteira pelo Manchester City. Recebeu, ainda, uma homenagem por meio de seu nome em uma das arquibancadas do antigo estádio do City, Maine Road.

O mítico treinador Matt Busby, antes de disputar partidas contra o Manchester City, sabendo da capacidade de Bert para ler o pensamento dos seus adversários, dizia aos seus jogadores: "Não parem para pensar onde vão chutar. Chutem primeiro, e depois pensem. Se vocês olharem para a goleira e pensarem, Trautmann vai ler o seu pensamento e defender seu chute". Na mesma linha, o seu companheiro de equipe, Neil Young, declarou: "A única maneira de marcar um gol contra Bert, no treinamento, era errando o chute".

Sua defesa na FA Cup de 1956 foi eleita a maior defesa de todos os tempos na FA Cup, merecidamente.

Trautmann é membro do Hall da Fama do Futebol inglês, e recebeu a honraria da Oficial da Ordem do Império Britânico, por sua contribuição ao Futebol.

Mora hoje em uma casa de praia, em Valencia, na Espanha, com sua atual esposa. Ainda torce pelo Manchester City e pela Inglaterra, o lugar onde foi recebido.

Um vitorioso, tanto na vida, quanto na carreira profissional, Bert Trautmann é um dos grandes jogadores que, infelizmente, não pudemos ver jogar.